terça-feira, 17 de março de 2009

Almoço

Depois do almoço, limpou o sangue que gotejava de seus lábios, suspirou saciado, bebeu o resto da cerveja Bossa Nova que jazia quente, apoiou as costas na madeira podre que servia de encosto e observou, na estrada deserta em que o calor era visível através dos gases que subiam do asfalto, um escorpião rastejar com dignidade. Ela era boa. Nunca teve raiva dela. Encaminhou-se até o freezer e puxou mais uma cerveja. Estava gelada. Alguns quadros pendiam tortos das paredes. Mostravam um casal feliz. Preto e branco. Na radiola girava um disco antigo. Ele achava que os discos antigos tinham um romantismo que os aparelhos modernos não conseguiam reproduzir. Billie Holiday. Summertime. Alternava demorados goles aos sutis gestos de satisfação dos músculos da face. Não estava arrependido. Lembrou-se da noite anterior. Confusas imagens lhe vieram à tona. Sua mulher fazia sexo anal com um dos clientes. Gemia. Agora não lhe importava mais. Propositalmente terminou a cerveja no mesmo instante em que aquela música terminava também, jamais chegando à outra faixa, devido aos arranhões. Lá fora, deu partida ao Opala SS, 76, vagarosamente, atropelando, com prazer refinado, o inseto, cuja pontiaguda cauda retorcia-se em espasmos violentos. Observava-o do retrovisor e seus olhos adquiriam um fulgor de excitação. Saindo da jurisdição, viu cintilar sob o sol daquele sábado: “Serra Talhada - 137 KM”. Abastecendo no posto próximo, deu carona a uma adolescente de cabelos encarnados que chorava, contava sua estória e dizia que seu pai era muito bruto. Ele a consolava entre gentis galanteios. Esforçava-se por demonstrá-la o quanto seu pênis latejava enrijecido. Sentia-se feliz. Jamais voltaria àquele lugar novamente, onde os membros esquartejados de sua mulher amontoavam-se dentro de um freezer, junto às garrafas de cerveja barata. Servira-lhe de almoço.

David Moura

Um comentário:

Malu disse...

Bem talhado. Marcante, fodáustico. Gostei muito. Bjo.